Quando eu nasci, no momento em que vi as luzes do centro cirúrgico, percebi que era diferente. Meus ouvidos já captavam todo os sons a minha volta. Tais sons me pareciam tão incríveis que me impediram de chorar, mesmo quando o médico deu o famoso "tapinha" em mim.
Essa incrível percepção para sons, me acompanhou por toda a vida. Lembro-me, vagamente, que, quando criança, só me acalmava com brinquedos e jogos que produziam algum tipo de música. Por volta dos 12 anos, vendo minha paixão pela música, minha mãe me matriculou em aulas de piano. Dona Aracy, a professora, ficou quase que espantada, quando, na primeira aula, eu toquei "O Galope do Diabo", de Jean-Lous Gobbaerts, sem nunca ter ouvido tal melodia.
O tempo foi passando, deixei as aulas de Dona Aracy e comecei a aprender por conta própria. Devido a isso, não saía para brincar com outras crianças, sendo assim, não tinha amigos. Meus melhores amigos eram Beethoven, Rachmaninoff e Bach, sem desmerecer outros tantos. Por quase não sair, apenas para ir à escola, as crianças do bairro viviam mexendo comigo e me colocando apelidos de mau gosto. "Nerd!", dizia a loirinha dos cabelos cacheados que morava na casa em frente a minha. "Maluco!", dizia o menino ruivo e com sardas que morava no final de nossa rua. Isso me chateava um pouco, mas a música me fazia perceber que eu não era aquilo que diziam. Era uma criança normal, que a essa altura do tempo já tinha o próprio piano de cauda, presente de minha avó materna, que também era uma amante da música.
Quando fiz 18 anos, fui estudar na Academia de Música da nossa cidade. Ver os corredores cheios de jovens músicos, com suas partituras à mão e a música que saía de cada sala, me deixava leve de espírito. Finalmente eu estava em um lugar que deixava confortável. Para mim, as matérias do curso que escolhi pareciam tão desnecessárias quanto ir a uma festa numa casa de show. Não sei explicar, mas tudo o que os professores diziam já era de meu conhecimento. Enquanto alguns alunos se desdobravam entre uma matéria e outra, eu já pensava em compor minha primeira obra. Os intervalos eram reservados para descansos e alimentação, mas eu preferia ficar no auditório tocando Chiquinha Gonzaga. Era essa a minha rotina colegial.
Ao final das aulas, quando chegava em casa, ia direto ao piano para tocar todas as sinfonias que me eram apresentadas. E ali ficava por horas, até que minha mãe me chamasse para uma última refeição. Meu quarto parecia não ter chão, por tantas letras e partituras que estavam espalhadas. Ao lado de meu piano, meus pais colocaram uma pequena mesa para que eu pudesse compor. Mas fosse na mesa ou sentado ao piano, não conseguia compor a sinfonia perfeita. Prova disso era o lixo, que tinha muito papel amassado e descartado. Eu sempre me perguntava o porquê de ter um ouvido apuradíssimo para música e não conseguir compor alguma coisa decente.
Assim aconteceu por 2 anos, quando tive meu primeiro concerto na Academia, para professores e alunos. Agora com 20 anos, o que parecia ser fácil, estava se tornando um martírio. Me incomodava ter o repertório, de meu primeiro concerto, apenas com músicas de nomes já consagrados. Eu queria ter as minhas próprias peças.
As cortinas se abriram e, mesmo contra minha vontade, tive que entrar e tocar para todos que estavam sentados nas poltronas do auditório. Os olhos dos alunos e professoras pareciam estar atentos a qualquer erro que eu cometesse, mas isso não foi suficiente. Fechei os olhos e comecei com "O corta-jaca", de Chiquinha Gonzaga.
(Fotografia retirada do Google Imagens)